A "autovitimização" de um frade dominicano.
Bruno Braga.
"Infelizmente o nosso Governo não está abrindo os arquivos da ditadura. Mas a arte brasileira o faz, e o 'Batismo de Sangue' é primoroso neste sentido".
Com estas palavras Frei Betto comenta o filme "Batismo de Sangue", filme baseado no livro homônimo de sua autoria ("Batismo de Sangue", dirigido e produzido por Helvécio Ratton – DVD: Extras, Making Of, Tempo 21:05). O frade dominicano denuncia a existência de obstáculos, dificuldades, impedimentos, estabelecidos pelo "Governo" brasileiro para acessar documentos relativos ao período histórico em que o país esteve sob o regime militar. O filme, no entanto, preencheria a ausência da documentação oficial, pois ele, segundo o próprio Betto, "escancara os crimes da ditadura, a violência da ditadura" (Cf. seqüência do mesmo trecho do DVD citado acima), contando o envolvimento e a atuação de um grupo de frades dominicanos nas questões políticas da época, descrevendo ainda o conturbado contexto da ocorrência dos fatos.
Acontece que, ao conferir os patrocinadores do filme "Batismo de Sangue", verifica-se, surpreendentemente, o apoio do mesmo "Governo" criticado por Frei Betto. "Governo" que aparece representado por suas três esferas administrativas, Federal, Estadual e Municipal – respectivamente, pelo Ministério da Cultura (Brasil, Governo Federal), Governo de Minas (Cultura – "Filme em Minas") e Prefeitura BH (Cultura – Fundação Municipal) [Cf. A lista completa dos patrocinadores encontra-se imediatamente após este texto; nela constam ainda empresas públicas federais, estaduais e outras de caráter privado. Os patrocinadores podem ser conferidos nos créditos iniciais do filme e nos créditos do "Making Of", sendo os deste último no tempo 22:12].
Seria prudente, no mínimo, questionar: como o "Governo" brasileiro estaria dificultando a abertura dos arquivos da ditadura se, ao mesmo tempo colabora, financia, patrocina um filme que, segundo o próprio Frei Betto, "escancara", quer dizer, revela e denuncia os crimes e a violência de tal período da história nacional? Em outras palavras, se o "Governo" esconde uma documentação comprometedora, como, por outro lado, patrocinaria uma película que os substitui e, conseqüentemente, funcionaria como uma espécie de "auto-denúncia"? A confusão de Frei Betto é, na mais branda hipótese, estranha. Poder-se-ia tentar algum esclarecimento; não verificando os mecanismos "burocráticos" de acesso aos arquivos dos documentos – seria pertinente examinar o modo como foram representados os protagonistas do filme, e também analisar o próprio discurso de Frei Betto: em ambos está presente um elemento valioso para a compreensão pretendida, a "vitimização".
No filme de Helvécio Ratton os personagens principais, os frades dominicanos, são carregados de martírio e santidade - sobretudo Tito. Eles têm expressões faciais contemplativas, discursos melífluos adornados com a poética e com a "utopia". Traços que são trazidos para o primeiro plano da narrativa com o intuito claro de construir uma imagem, criar ídolos, heróis sacro-santos, enquanto as ações políticas são colocadas como simples pano de fundo. Ocorre que, a insistência na "nobreza" do caráter dos protagonistas, e o elogio de seus "elevados" propósitos – valorizados constantemente com a "utopia" – funcionariam como uma carta de permissão para qualquer movimento, intervenção, ou atividade, necessários para a concretização dos projetos "sagrados". Então, qualquer impedimento aos "elevados" propósitos dos "nobres heróis sacro-santos" significaria injustiça, violência, fazendo deles, conseqüentemente, vítimas – eles se tornam vítimas em qualquer situação de contrariedade, mesmo quando decidem pelo combate armado, estando, assim, em condição de igualdade com o "inimigo", isto é, tendo nas mãos o poder de matar.
A "vitimização" dos protagonistas de "Batismo de Sangue", contudo, não é apenas produto da direção do filme, ela já é um traço do comportamento das pessoas concretas que são reproduzidas na ficção. Ela pode ser diagnosticada a partir das próprias palavras de Frei Betto - a pessoa concreta que é transformada em um dos personagens centrais do filme – um exemplo efetivo de "autovitimização". O frade dominicano ainda se sente oprimido por um "Governo" que impede e obstaculiza o acesso aos documentos do período de regência militar, ainda que este mesmo "Governo", em suas três esferas administrativas – Federal, Estadual e Municipal – financie, patrocine um filme que retrata fielmente, segundo ele mesmo, um fato histórico e a sua própria vida. Frei Betto ainda acredita estar sendo censurado, constrangido, reprimido mesmo quando "Batismo de Sangue" conta com o apoio da maior empresa de mídia e comunicação do país (Cf. o apoio da Globo na lista abaixo). O dominicano sente-se perseguido, injustiçado, ainda que receba publicamente o status de "intelectual", e com ele prestígio, autoridade e influência - não apenas do grande público, mas também de seus pares e, inclusive, do mais alto posto do Poder, enquanto conselheiro pessoal do ex-presidente da República.
A "autovitimização" reconforta, é uma espécie de apaziguamento do espírito – ela aponta um "carrasco", e conseqüentemente fornece para indivíduo um "culpado" por tudo aquilo que lhe acontece de mal, isto é, um responsável por todos os infortúnios de sua vida, o isentando, automaticamente, de qualquer imputação pública ou da autoconsciência. O "culpado", então, passa a ser um eterno endividado: nada que faça para se redimir, e nem mesmo uma mudança total das circunstâncias que poderiam corroborar a sua responsabilidade, será suficiente para isentá-lo da "dívida". Por isso o "carrasco" é sempre "cobrado", e por causa do débito insolúvel deve ser acusado, quando não agredido ou insultado. A "vítima", por sua vez, tem um "garantidor" eterno para seus infortúnios, seus fracassos, para as contrariedades inerentes à vida, seus pecados íntimos, para seus crimes – ela não se responsabiliza pelo cumprimento de qualquer encargo, pois tem quem o pague. Tudo aquilo que a contraria, que obstaculiza seus desejos, ambições, a sua vontade, é de total responsabilidade do "carrasco": se a "vítima" não obtém ganhos materiais, financeiros, se não é correspondida em seus afetos, se não tem prestígio e reputação, reconhecimento intelectual, o "culpado" deve pagar.
Acontece que a "autovitimização" alimenta no indivíduo o ressentimento, uma profunda mágoa com relação ao "culpado" precariamente eleito, mas eternamente odiado. Sentimentos que podem se alastrar para o domínio cultural, criando um ambiente onde boa parte das pessoas se sente "vítima", se sente injustiçada, perseguida - por isso a grande maioria julga que deveria ser ressarcida e indenizada pelos "culpados", embora considere toda e qualquer forma de compensação insuficiente para mitigar seus suplícios eternos. Neste ambiente os ídolos, as personalidades de referência, também são pessoas perseguidas, discriminadas, são verdadeiros mártires, e por isso mesmo recebem o status de "heróis da nação", porque sofreram mais que a média geral. Transformam-se em heróis por causa do seu martírio, e não por suas ações, ímpeto e vigor. De fato existem "vítimas" e "carrascos" - porém, para "heróis", ou "mártires", construídos a partir desta relação, acontece algo estranho, que se expressa na confusão de Frei Betto: é que estes pretensos heróis se sentem "vítimas" ainda que tenham recebido status de autoridade, e com ele prestígio e respeito social; são vítimas mesmo tendo alcançado as altas esferas do poder político e econômico, recebendo com isso apoio e financiamento públicos e do setor privado. Com a força e influência política, social, poderio financeiro, os "heróis da vitimização" continuam se sentindo fragilizados, reprimidos e insultados, mesmo que seus poderes sejam infinitamente superiores ao do seu eterno "carrasco", do "culpado". Mas qual a causa da "autovitimização"? Um sentimento profundo de insegurança diante dos infortúnios inerentes à própria vida? Medo de "cara feia" ou não aceitação dos perigos da disputa ou do combate? Ou estratégia para a manutenção do poder e do prestígio social de quem passou a fazer parte do próprio "Governo", estimulando o sentimento de compaixão inerente ao ser humano? Bom, levantar estas hipóteses requer cuidado, porque em um ambiente de "autovitimização" elas poderiam ser consideradas uma inconveniência, quando não um insulto.
Batismo de Sangue.
Direção e Produção de Helvécio Ratton.
. Downtown filmes.
- Apoio e lançamento da Globo Filmes.
. Ancine – Agência Nacional de Cinema.
- Filme produzido e financiado com o apoio da Ancine.
- Projeto apoiado com recursos do Prêmio Adicional de Renda.
. Filme contemplado pelo Programa Petrobrás Cultural.
. Lei do Audiovisual Ancine / Lei de Incentivo a Cultura Ancine.
. Patrocínio:
- BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - Ação Cultural.
- Eletrobrás.
- Furnas.
- MBR – Minerações Brasileiras Reunidas – Uma Empresa Caemi.
- Usiminas.
- Gasmig.
- Cemig.
- Governo de Minas – Cultura / "Filmes em Minas".
- RM Sistemas.
- Realizado com os benefícios da Lei Municipal de Incentivo a Cultura de Belo Horizonte: Cultura; Cultura – Fundação Municipal; Prefeitura BH.
. Apoio Cultural:
- Universidade FUMEC.
- INFRAERO – Aeroportos Brasileiros.
- DotTech.
. Produtores Associados:
- Quanta.
- TeleImage.
. Apresentação:
- Petrobrás.
- V & M do Brasil.
. Produção:
- Quimera.
(*) Cf. Créditos iniciais do filme e créditos finais do "Making of", sendo que os deste último estão no tempo 22:12.
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