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Monday, July 26, 2010

Liberdade para escolher o próprio caráter?

Bruno Braga.




É sempre oportuno interrogar o próprio caráter: é um exercício de grande valia para, simultaneamente, examinar as idéias enraizadas na mente e as do imaginário popular – idéias muitas vezes confusas, vazias, sustentadas irrefletidamente.

Pensar a partir do caráter individual é uma escolha estratégica, sobretudo porque a imensa maioria das pessoas tem como certo que a personalidade, a essência interior, particular, é enformada pelo exterior – em outras palavras, o sujeito seria um produto do meio no qual está inserido: é moldado pela instrução dada pelos pais e pela educação ministrada pelas instituições de ensino; é formatado pelas circunstâncias históricas de uma época, as condições sociais e econômicas, pelos infortúnios e sucessos da vida particular, enfim, por tudo aquilo que o cerca e concorre para configurar o seu contexto. No entanto, seria no mínimo conveniente, para testar as duas vias possíveis de reflexão, questionar se de fato não ocorre o inverso, quer dizer, que o caráter subjetivo é pré-formado, dado a priori, e tudo aquilo que se coloca à sua volta, sob as condições do espaço, do tempo, serve apenas como estímulo para que a unidade essencial e interior possa emergir. Nestes termos, cada um carregaria, até o fim de sua curta e miserável existência, seu único e imutável caráter – embora incapaz de conhecê-lo previamente, ou de apreendê-lo por completo em uma só visada, o indivíduo é conduzido às escuras por seu núcleo primordial: o reconhece de forma opaca, turva, imiscuído em meio às atribulações de sua vida, da jornada hesitante, frustrada, que faz desmoronar gradativamente o imaginário daquilo que “acredita” ou ainda “espera ser”, recolhendo pistas consternadoras e brutais do que de fato é.

A contemporaneidade impõe dificuldades para pensar a aprioridade do caráter individual, e as diferenças previamente estabelecidas entre eles - talvez dois destes obstáculos sejam mais evidentes: o primeiro, a vida em uma sociedade de massa, na qual um padrão de existência precisa ser obedecido; o segundo, inerente ao anterior, na forma de uma compensação ilusória pela massificação, é um suposto respeito à diversidade e liberdade de escolha – porém, estes são dados em um plano superficial, importante, mas no nível dos trajes, da formação de grupos e “tribos”, na culinária, nas artes e manifestações culturais. Subjacente, no entanto, ao envoltório externo, aos adornos e atavios da aparência, o caráter, a moral individual, permanece protegido. A liberdade, pronunciada com orgulho pela contemporaneidade, neste fundo interior, obscuro, parece absolutamente estéril.

A livre escolha, diferente da imponência do discurso, agora se torna algo nebuloso, fantasmagórico. É colocada em cheque não apenas pela massificação da oferta do mesmo, no nível da exterioridade: até mesmo a tentativa de fuga da homogeneidade é inútil, restrita à superficialidade, sob a ameaça de ser meramente exótico. Então, a partir da proposta de conversão da análise, refletindo a partir da individualidade, é necessário lançar uma questão ainda mais radical – para além dos trajes, das opções de mercado, das inúmeras formas de divertimento, das artes e da cultura em geral, que conservam grande importância, mas não esgotam a existência – é preciso se perguntar: assim como se escolhe a cor da roupa, o prato e o sabor da refeição, o destino da viagem e a forma de diversão, é permitido escolher o próprio caráter, a personalidade individual, ou seja, a essência moral?

4 comments:

renzolima said...

muito bons os parâmetros estabelecidos para essa reflexão. Eu fico com a lei (também psicológica) da ação e reação. Portanto, vc pode e tem todo o direito de, não escolher, mas "moldar" o seu caráter. Evidentemente se insere nesse contexto, além do "querer", o "ser capaz". No entanto acredito que um lado reforça e abre espaço para o outro.
abç! Renzo Tocador.

Bruno Braga. said...

Caro Renzo,

Antes de qualquer coisa eu agradeço o comentário.

Interessante a sua consideração. Apesar do título e da conclusão - que são uma pergunta sobre a liberdade de escolher o próprio caráter - os argumentos do texto apontam para um núcleo substancial, intocável e determinante do sujeito.

Seria necessário discutir sobre os termos que você utiliza para articular a questão, como “lei (também psicológica) da ação e reação”; “moldar” o caráter; “querer” e “ser capaz”.

Abraço,
Bruno Braga.

Belo Horizonte, 10 de Agosto de 2012.

renzolima said...

não é tão complicado Bruno. O q eu quis dizer é que, até onde eu compreendo, aquilo que escolhemos a cada lance do livre arbítrio se reflete positiva ou negativamente na nossa realidade psicológica (que é uma parte considerável do sujeito) e isso sim seria determinante - para uma estrutura cada vez mais articulada e consciente, capaz de captar as consequências de cada ação efetiva desse sujeito. Ora, isso então não seria moldar o próprio caráter?? A escolha consciente de sua futura "realidade psico-racional".

Bruno Braga. said...

Caro Renzo,

Agradeço os esclarecimentos para continuarmos nossa conversa.

Sim – estou de acordo com você sobre o poder de escolha, os efeitos das decisões e a importância da estrutura psicológica. No entanto, penso eu, que todos estes fatores têm um alcance limitado. Estão sujeitos às circunstâncias; à fatalidade; à capacidade de apreensão e elaboração cognitiva do sujeito; ao equivoco, ao erro e à ilusão; à escolha de falsos motivos e razões; à instabilidade das emoções e às fragilidades particulares; às exigências sociais, dos pares, às da própria pessoa e ao autoengano – enfim, a uma série de outros elementos que compõem esta equação.

Para além de todos os fatores, resta um núcleo que permanece intocável; ele não é “moldável”, a pessoa já traz consigo mesma – é o que chamei de “caráter”.

Por isso eu tenho certa desconfiança sobre uma “escolha consciente da futura realidade psico-racional” – porque tanto esta “escolha” quanto esta “realidade” são extremamente precárias. Isto não significa, no entanto, a abdicar da razão; mas apenas indicar os seus limites e tensões.

Estou pensando em traduzir um texto e publicá-lo como material de apoio. Não para valer-me de um argumento de autoridade, e sim estimular ainda mais esta reflexão. Enquanto isso, eu sugiro a leitura de um artigo que eu mesmo escrevi - penso que é pertinente: “A lucidez dos momentos traumáticos” [http://dershatten.blogspot.com.br/2011/10/lucidez-dos-momentos-traumaticos.html].

É isso – qualquer dúvida, continuamos nossa conversa.

Abraço.
Bruno Braga.
http://dershatten.blogspot.com

Belo Horizonte, 13 de Agosto de 2012.