Bruno Braga.
Noli foras ire, inteipsum redi: in interiori homine habitat veritas, Santo Agostinho, De Vera Religione, XXXIX, 72.
[...] "o princípio e o fim do mundo devem ser procurados não fora dele, mas dentro de nós mesmos", Arthur Schopenhauer, CFK, 2005, p. 530.
A princípio seria absurdo buscar alguma relação entre o pensamento de um santo da Igreja Católica e a filosofia de um ateu confesso - propriamente, entre Agostinho e Schopenhauer. De imediato esta investigação confronta duas perspectivas sobre o mundo - de um lado como obra da Sabedoria de Deus, e, de outro, como expressão de uma carência irremediável. Porém, um exame mais perspicaz pode revelar alguns pontos de convergência entre estes pensadores aparentemente tão distantes: no recolhimento interior, na confissão, e na metafísica.
Em suas "Confissões" Agostinho se pergunta: "Se existo, que motivo pode haver para Vos pedir que venhais a mim, já que não existiria se em mim não habitásseis?" (p. 28). Para buscar a solução deste enigma, o santo resolveu sobre o seu caminho: "Voltar a mim mesmo, recolhi-me ao coração" [...] – e, neste percurso, no sentido da sua interioridade, ele reconhece, desde a dimensão mais profunda do seu ser: "Entrei e vi" (p. 185).
O recolhimento de Agostinho revela Deus. Mas, o admirável encontro com a perfeição o dá ciência da condição humana, da sua insignificância e da sua corrupção: "Ninguém 'conhece o que se passa num homem, senão o seu espírito, que nele reside [I Cor. 2, 11]. Há, porém, coisas no homem que nem sequer o espírito que nele habita conhece" ("Confissões", p. 263). A mácula da obscuridade, no interior do homem, é a herança que ele carrega de seus pais primitivos – a marca que nem mesmo a sua faculdade mais nobre, a que o distingue de todas as outras espécies, é capaz de apagar: porque se a própria alma racional é viciosa, os erros e as falsas opiniões contaminam a vida (p. 115).
Schopenhauer, por sua vez, está empenhado na busca da essência do mundo. Decide não pelo caminho da revelação divina, mas pelo da Filosofia. O pensador de Danzig, herdeiro da distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si, denuncia que não se pode buscar a essência no mundo exterior – porque ele, além de ser a dimensão da transitoriedade, da corrupção, é um produto pré-configurado pela faculdade do conhecimento. Portanto, o plano dos objetos tem um caráter relativo, isto, relativo a um sujeito que o conhece e, ao mesmo tempo, o pré-configura.
Acontece que o mundo externo, objetivo, não é uma fantasmagoria, ele tem uma essência. Neste sentido, o homem, como um objeto entre inúmeros outros, não é apenas um espectro evanescente: ele é, além de um fenômeno, um "em-si", uma essência. Porém, para acessá-la, não poderá seguir o mundo exterior, submetido às formas do conhecimento – tempo, espaço e causalidade. Ele precisará de um desvio, uma via subterrâneo: o seu próprio interior. A experiência intuitiva e interior de Schopenhauer revela, não uma divindade, mas um querer obscuro. Uma vontade irracional, um ímpeto cego, que sustenta não só as atividades inconscientes do corpo, mas é o fundamento de sua própria faculdade cognitiva: alimentar uma vontade insaciável.
O núcleo do mundo é reconhecido no interior do homem, mas se expressa no mundo objetivo, quer dizer, na matéria inorgânica, nas plantas e nos animais, onde a Vontade manifesta o seu caráter nuclear: a autodiscórdia consigo mesma, realizada na guerra de todos contra todos, na busca cega e insaciável por tempo, espaço e matéria – tendo a sua face mais terrível quando o homem se torna o lobo do próprio homem (homo homini lupus).
No entanto, neste mundo de trevas, lutas e sangue, o homem é o único ser capaz de redimir todos os outros. Porque somente ele pode compreender, através de uma experiência intuitiva e imediata, que o mundo é uma Vontade una e indivisível, e, por isso, lançar-se nesta guerra insana e brutal – seja contra o mundo, contra os seus iguais, ou contra si mesmo – é um autoflagelo: é cravar os dentes na própria carne. Esta compreensão, que não se faz por conceitos e abstrações, mas por uma intuição súbita e imediata, o silencia, e ele se compadece.
O que poderia unir Agostinho e Schopenhauer – distantes entre Deus e a Vontade? Não é apenas o reconhecimento da corrupção do homem e do mundo. Não é somente o reconhecimento, através de um recolhimento interior, de uma dimensão metafísica que fundamenta o mundo – embora distintas: para um, Deus, e, para o outro, uma Vontade "demoníaca". Os dois pensadores, Agostinho e Schopenhauer, se aproximam, também, pelo caráter de suas próprias considerações: o caráter confessional.
Agostinho se coloca diante de Deus, com o coração aberto, e narra os próprios pecados: "Olhai, eu não escondo as minhas feridas" (p. 285-286). Schopenhauer, por sua vez, ao apontar a face terrível da existência, o obscuro e tenebroso que a imensa maioria das pessoas se esforça para ocultar, reconhece:
"As meditações filosóficas que alguém pensou e investigou para si mesmo tornam-se depois também um benefício para outros, e não aquelas que originariamente eram destinadas a outrem. As primeiras trazem o selo da honestidade perfeita, porque ninguém procura enganar a si, nem se alimentar com nozes ocas" [...] "Minha estrela-guia foi de modo sério a verdade: seguindo-a, precisei aspirar apenas à minha aprovação, completamente distanciado de uma época que se rebaixou tão profundamente em relação a todos os esforços espirituais elevados, para não falar de uma literatura nacional degradada, na qual a arte de unir palavras elevadas com sentimentos baixos atingiu o seu apogeu. Obviamente não posso escapar dos erros e fraquezas necessariamente inerentes à minha natureza, como a qualquer outra; entretanto, não os multiplicarei com acomodações indignas" (MVR, 2005, pp. 30-31).
E em um trecho sobre a "autobiografia", o filósofo, não se constrange:
"Conhece-se melhor e mais fácil um autor, também como homem, a partir de seu livro, pois todas aquelas condições fazem efeito na escritura de um livro de modo ainda mais vigoroso e constante" [...] "Ele se coloca voluntariamente no confessionário" (MVR, p. 327).
Mas, as confissões de Agostinho e Schopenhauer estão, a princípio, afastadas por um abismo: o Santo da Igreja sobre o pináculo da religião, e o pensador de Danzig no da filosofia. No entanto, no mundo da vontade maligna de Schopenhauer é possível uma "conversão" fundamental: que não é o pertencimento a uma Igreja, mas uma compreensão intuitiva que revela no outro as próprias dores e sofrimentos, quando é tomado pela compaixão - uma compreensão com repercussões éticas, semelhante à vida cristã. Agostinho, por sua vez, não se coloca somente no plano da religião institucional, nem se aparta do mundo em uma dimensão celestial – pelo contrário, diz: "Tremi com amor e horror" (p. 186). Nas profundezas entre os pináculos doutrinais que distanciam Agostinho e Schopenhauer está algo de essencial: a experiência intuitiva, a compreensão imediata de uma dimensão que os transcendem e os abarcam, uma metafísica. Uma experiência que surge do espanto e do terror, mas o seu desfecho é a reconciliação, do sujeito consigo mesmo e dele com o fundamento do mundo: uma experiência de enriquecimento cognitivo e ético. Este o sentido da sua busca sincera, com o coração aberto.
Enfim, a distância aparentemente abismal entre Agostinho e Schopenhauer é diminuída quando se examina de perto os dois pensadores. Porém, para reconhecer esta proximidade é necessário não apenas comparar doutrinas, conceitos, juízos e reflexões, mas reconstruir as experiências. Neste esforço, elementos fundamentais aproximam aquele santo da Igreja e o ateu alemão: o recolhimento interior, na dimensão mais abissal do coração humano; a sinceridade do ato confessional, e o reconhecimento de um plano metafísico.
Bibliografia.
AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J. Editora Nova Cultural: São Paulo, 2000. Coleção Os Pensadores.
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. Tradução de Jair Barboza. Editora Unesp: São Paulo, 2005.
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