Bruno Braga.
A teledramaturgia no Brasil exerce, sobre a sociedade, um poder extraordinário. Ela, com suas tramas, não apenas prende a atenção da audiência maciça que assiste às novelas; mas, através de seus personagens, é capaz de lançar modas, ditar bordões, estimular comportamentos, e moldar a forma de pensar do telespectador.
Tão popular quanto as novelas é a idéia de que o poder da teledramaturgia sempre esteve a serviço de "setores reacionários e conservadores da sociedade". É preciso verificar, porém, se esta idéia comum - de certo modo confusa, opaca, obscura – tem um correspondente na realidade, quer dizer, é necessário identificar os agentes reais e concretos que estão por trás dela. Basta iniciar a investigação, para que imediatamente surja um nome de grande vulto que contradiz o senso comum: Dias Gomes.
Aclamado dramaturgo e autor de telenovelas, Dias Gomes foi um comunista de carteirinha. Ingressou no Partido Comunista Brasileiro na década de 40. Embora tenha permanecido no partido até 1971, colaborou imensamente com a "revolução", mesmo após sua saída. Em 1995, ao ser questionado se quando jovem ele escrevia "em sentido revolucionário", Dias Gomes sorriu e disse: "Até hoje" (Entrevista para o programa Roda Viva, em 12 de Junho de 1995. A transcrição está disponível no endereço:http://www.rodaviva.fapesp.br/materia_busca/405/dias%20gomes/entrevistados/dias_gomes_1995.htm). Era um agente que concorria para o sucesso da estratégia da revolução cultural. Neste domínio a tática adotada não era a da campanha publicitária explicita do Socialismo-comunismo, fazendo tremular bandeiras vermelhas estampadas com a foice e o martelo, ou proclamando as palavras de ordem de seus líderes e teóricos. Não – o estratagema era atacar veladamente os valores tradicionais da cultura, sobretudo os judaico-cristãos, pejorativamente chamados de "moral burguesa". Comprometido com esta estratégia revolucionária, o próprio Dias Gomes revela em sua autobiografia - "Apenas um subversivo", de 1998 - como militou em favor do "divórcio" na novela "Verão Vermelho" (1970). Este não foi um caso isolado e excepcional: em "Assim na terra como no céu" (1970) o alvo era o celibato clerical, e em "Roque Santeiro" (1975), o Cristianismo. As investidas contra a cultura tradicional apareciam diluídas nas tramas, em um formato que o público, o telespectador, as pudessem digerir e, conseqüentemente, aceitá-las.
Talvez o tempo seja um obstáculo que dificulte a compreensão desta estratégia revolucionária, pois fora aplicada na já distante década de 70. Esta dificuldade, contudo, pode ser superada recorrendo a uma produção atual da teledramaturgia, uma amostra que, pode-se dizer, "caiu do céu": a reapresentação da novela "O Astro".
Originalmente redigida por Janete Clair, "O Astro" foi um enorme sucesso em 1978. A novela foi o coroamento da carreira da escritora, que começou com o estimulo do marido, Dias Gomes. O casal dominou a teledramaturgia nacional dos anos 70. No entanto, a influência de Dias Gomes sobre as composições da mulher não se limitou apenas ao incentivo; ela afetou também a elaboração das tramas e dos personagens, nos quais inoculava as suas pretensões revolucionárias. Embora a nova versão de "O Astro" apresente reformulações, é possível extrair dela algumas destas pretensões, conservadas da produção original. Uma delas aparece dissimulada no conflito entre Márcio Hayalla e o seu pai, Salomão.
Márcio é um jovem idealista. Filho único, ele é o herdeiro do império construído pelo pai, Salomão: a rede de supermercados do grupo Hayalla. Contudo, para o jovem o mundo dos negócios é sujo, ele corrompe as pessoas – por isso, em vez do "Capitalismo", Márcio sonha com uma vida de "liberdade" e um mudo no qual haja "igualdade entre todos". Nestes termos fica estabelecido o conflito: de um lado o jovem idealista e revolucionário; do outro o seu pai, o magnata capitalista, conservador e "reacionário". Algumas cenas ilustram este confronto.
No episódio de 12 de Julho de 2007 [http://oastro.globo.com/capitulo/herculano-e-preso-e-conhece-ferragus-na-cadeia.html#cenas/1562952], Márcio abre as portas de um dos estabelecimentos de Salomão para mendigos. Na entrada o jovem oferece dinheiro aos miseráveis para que eles possam consumir o que quiserem – assim, justifica-se Márcio para o pai indignado, não haveria prejuízo nos negócios, pois os mendigos estavam "comprando" as mercadorias. No entanto, as cenas exibem o contrário: mostram o saque do estabelecimento – o que coloca como pano de fundo uma "luta de classes".
Em 13 de Julho há um trecho emblemático [http://oastro.globo.com/capitulo/salomao-manda-internar-o-filho-marcio.html]. Em uma confraternização social na mansão da família Hayalla, Márcio aparece nu entre os convidados para enfrentar o pai. O jovem acusa Salomão de ser um "tirano" de uma "família patriarcal" que subjuga a mulher – e vocifera: "Pai, por favor, pai! O dinheiro destrói as pessoas, ele só traz infelicidade!" [...] "Se preocupe com os pobres!" [...] "Eu quero que o mundo seja melhor! Que o mundo seja mais feliz, pai!" [...] "Viver com liberdade" [...] "fora da sangria de ter que ganhar dinheiro" [...] "Dinheiro sujo". Após a inflamada discussão pública, o próprio Salomão conduz o filho até o andar superior da casa, onde o espanca – no dia seguinte ele interna Márcio em um Hospital Psiquiátrico.
As cenas descritas apresentam uma série de caracterizações diluídas e camufladas. Como a de que a família tradicional é tirânica, opressora, sem amor e afeto; como a de que o mundo está configurado pela "luta de classes"; que o "Capitalismo" e o "dinheiro sujo" destroem os ideais de "igualdade" e de "liberdade", que violentam o "povo" e trazem somente "infelicidade". Com estas caracterizações a revolução cultural estava sendo executada – seduzindo e configurando o imaginário popular, de modo que, quando estes estereótipos estivessem profundamente enraizados, os que professavam os mesmo ideais no domínio político-social estariam protegidos e imunizados. Para identificá-los é necessário verificar quem reivindica o poder em nome do "povo", e promete, com ele, a "liberdade" e a "igualdade" em "mundo maravilhoso", "melhor" e "feliz"; quem acusa o "Capitalismo" e o "dinheiro" de serem a causa de todos os males do mundo; denuncia a suposta tirania da família tradicional e a corrupção da "moral burguesa". Não é preciso muito esforço para reconhecer que todas estas bandeiras são levantadas pelos revolucionários Socialistas-comunistas, que com o trabalho estrategicamente efetuado pelo seu braço na cultura popular – como os de Dias Gomes e Janete Clair – adquiria respaldo e imunidade a críticas. A conquista do poder político não tardaria, de modo que, chegado o momento, não haveria praticamente nenhuma oposição, pois o imaginário popular já estaria configurado com os seus próprios ideais.
Se o poder da teledramaturgia é, hoje, algo indiscutível, qual seria o seu potencial quando Dias Gomes e Janete Clair levaram ao ar os seus trabalhos? A distância produzida pelo tempo não impede de encontrar algumas pistas para uma resposta. Carlos Drummond de Andrade escreveu em sua coluna no "Jornal do Brasil": "Agora que 'O Astro' acabou, vamos cuidar da vida, que o Brasil está lá fora esperando". Por sua vez, Mauro Mendonça Filho, diretor-geral da nova versão de "O Astro", teme que a produção recente não repita o sucesso da original, porque "na época a novela tinha mais audiência, e a Globo não tinha concorrência [...] (Cf. http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/940534-sucesso-nos-anos-70-o-astro-volta-a-globo-como-macrosserie.shtml). Isto indica que as novelas tinham ainda mais poder do que têm atualmente. Este poder estava a serviço da causa "revolucionária". O resultado da estratégia cultural – com a qual colaboraram os trabalhos de Dias Gomes e Janete Clair - pode ser reconhecido na própria cultura popular contemporânea, formatada com os mesmos tipos ideais e os estereótipos disseminados por seus agentes e militantes, entre eles, o de que a teledramaturgia obedece aos interesses de "setores reacionários e conservadores da sociedade".
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