Bruno Braga.
Pela
voz do ancião, Ésquilo narra uma das versões da história de Ifigênia, sacrificada
pelo próprio pai, Agamêmnon. Com a horrível imolação, o poderoso rei de Argos
pretendia apaziguar a deusa Ártemis, que ventos fortes soprava impedindo a
partida da expedição chefiada por ele contra Tróia:
Pois Agamêmnon não
se atreveria
ao holocausto de
Ifigênia, sua filha,
a fim de que
pudessem ir as naus
de mar afora resgatar
Helena bela?
As súplicas da
vítima, seus gritos
pungentes pelo pai,
a idade virginal
em nada comoveram os
guerreiros
ansiosos por saciar
a sede de combates.
Depois da invocação
aos deuses todos,
mandou o pai que
subjugassem sua filha;
usando as vestes para
proteger-se,
tentava a virgem
frágil resistir lutando
desesperadamente,
mas em vão:
como se fosse um
débil cordeiro indefeso,
puseram-na no altar
do sacrifício;
brutal mordaça
comprimia rudemente
seus lindos lábios
trêmulos de medo
e sufocava imprecações;
quando caíram
por terra as vestes
de formosas cores,
a cada um de seus
verdugos impassíveis
volveu os eloquentes
olhos súplices
- tão expressivos
como se pintura fossem –
Desesperada por
falar mas muda,
Ela, que tantas
vezes nas festivas salas
do senhoril palácio
de Agamêmnon
cantava com a voz
doce de donzela tímida
os hinos em louvor
ao pai amado!
O que depois
aconteceu não pude ver
E mesmo que pudesse não diria. [1]
No
livro de Gênesis, Deus põe a fé e a obediência de Abraão a prova:
Toma
Isaac teu filho único, a quem tu tanto amas, e vai à terra da Visão, e
oferecer-mo-ás em holocausto sobre um dos montes, que eu te mostrarei (Gen. 22,
7).
Abraão
chama o filho amado para a celebração de um holocausto, sem que a criança
soubesse que a lenha que carregava sobre as costas formaria o altar do seu
próprio sacrifício, a ser consumado pelo cutelo que o pai trazia nas mãos:
Meu
pai? Respondeu Abraão: Que queres, meu filho? Aqui vai o fogo, e o cutelo,
disse Isaac; onde está a vítima para o holocausto? (Gen. 22, 7).
Depois
de longa caminhada até o local determinado por Deus, Abraão levanta o altar –
cobre-o com a lenha, mas nele amarra o filho. Quando Abrão ergue o cutelo para
imolar a vítima, um brado vindo do céu o interrompe:
Não
estendas a tua mão sobre o menino, e não lhe faças mal algum. Agora conheci que
temes a Deus, pois que, por me obedeceres, não perdoaste a teu filho único (Gen.
22, 12).
Então,
em vez do filho, Abraão sacrifica um carneiro.
Agamêmnon
e Abraão – dois sacrifícios, dois destinos. O primeiro, ao retornar da batalha
em Tróia, é assassinado pela esposa Clitemnestra – que vingava, assim, a morte
da filha, mas também perpetuava a história de sangue envolvendo os Atridas.
Abraão, por sua fidelidade, fora abençoado com a promessa de que sua raça seria
multiplicada como as estrelas do céu e a areia das praias; que seus
descendentes possuiriam as portas de seus inimigos; e que todas as pessoas da
terra seriam benditas na sua posteridade, por ter sido ele obediente à voz do Senhor
(Gen. 22, 15-19). Agamêmnon e Abraão, e seus filhos Ifigênia e Isaac - duas
histórias, dois destinos, duas heranças: mas um complexo, o da existência
humana, da sua consciência moral e sua relação com o divino.
Referências.
[1].
ÉSQUILO, Agamêmnon in Oréstia. Trad.
Mário da Gama Kury. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 2003. [268-296].
Imagens.
[a].
Ifigênia. Séc. I, Carnuntum.
Klagenfurt Landesmuseum.
[b].
Abraão e Isaac. Rembrandt, 1634.
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