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Friday, December 31, 2010

Uma mensagem pós-natalina.

Bruno Braga.


 


 

É tempo de festa. Celebração daquilo que foi chamado "boa nova", quer dizer, o nascimento do "Filho do Homem", que trouxe ao mundo a fé no amor e na caridade. Mensagem que se renova com as comemorações religiosas, mas que é também reaproveitada por discursos políticos. Com palavras que objetivam o coração, o socialismo-comunismo prega a igualdade, a fraternidade e a justiça. Seus correligionários se inflamam para reivindicar a eliminação das distorções sociais, o acolhimento dos excluídos, a distribuição equitativa das riquezas, e, enfim, uma conversão do "olhar" para que as pessoas se tornem mais justas, compassivas e amorosas. Uma bela e sedutora mensagem, que, por possuir um conteúdo nobre, ou seja, o "bem da humanidade", acaba inoculando em seus partidários a certeza de estarem agindo na defesa e na proteção do mundo – estes, então, para concretizarem seu elevado propósito, acreditam que têm permissão para tudo: para insultar, agredir, corromper, destruir, torturar, mutilar, e, inclusive, matar: como se fez no passado, em escalas assustadoras, empunhando bandeiras vermelhas sob os gritos da revolução.

Se neste momento de festejos e trocas de presente qualquer palavra ou ação recebe um estímulo do "espírito natalino", que faz precipitar mensagens de paz, de amor, talvez fosse adequado um momento de silêncio: não só para evitar repetições, mas também manifestações vazias, disparatadas, afetadas. Contra o falatório político partidário, por sua vez, é pertinente quebrar o mutismo, renovando as palavras de Churchill: "As tolices do socialismo são inesgotáveis. Falam de camaradagem e pregam a irmandade dos homens. Quem são eles? São as pessoas mais deploráveis. Falam sobre uma irmandade comum no mundo inteiro! Mesmo entre eles, há vinte facções discordantes que se odeiam umas às outras, até mais do que odeiam você e a mim. Que falsidade! Vocês não podem sentir uma sensação de náusea na presunção arrogante de superioridade dessas pessoas? Superioridade de intelecto! 'Estamos buscando', eles dizem, 'um estágio da humanidade muito melhor do que a atual esquálida raça humana jamais poderá atingir'. E quando se trata da prática, caem por completo não só ao nível dos homens comuns mas a um ponto muito abaixo da média". [Winston Churchill, 11 de Dezembro de 1925, Tow Hall, Baterrsa. In CHURCHILL, W. Jamais ceder! Os melhores discursos de Winston Churchill. Zahar: Rio de Janeiro, 2005].


 


 

(*) Nota.


 

Este breve texto foi redigido sob o estímulo da leitura do artigo "O que devemos esperar em 2011?", de Dimas E. Soares Ferreira, publicado no site "Barbacena On line" – especificamente da passagem:

Hoje, nós cristãos nos esquecemos que há dois mil anos atrás um homem se levantou contra as injustiças impostas ao seu povo por uma elite corrupta que se aliou ao dominador imperialista estrangeiro. Este homem, mais do que "filho de Deus" foi um revolucionário, que ousou dizer que era preciso dividir o pão entre todos e que todos eram filhos de Deus [http://www.barbacenaonline.com.br/noticias.php?c=5139&inf=100].

Não há, aqui, nenhuma pretensão de estabelecer ataques pessoais, nem discutir a biografia do autor do artigo, já que desconheço completamente suas posições políticas, ou sua filiação partidária - embora a imagem de Jesus Cristo utilizada por ele forneça algumas pistas. No entanto, é esta mesma imagem - e não a pessoa que a descreve – que motiva o texto acima, pois é uma distorção, um falseamento, talvez inconsciente, para se adequar a uma concepção política. Porque Jesus Cristo, na descrição de Dimas Ferreira é praticamente um antepassado de "Che Guevara" – "levanta-se contra injustiças impostas ao seu povo", combate uma "elite corrupta" aliada de um "dominador imperialista estrangeiro", enfim, é um "revolucionário" – faltou-lhe apenas uma boina, um uniforme militar, um fuzil, e uma bela palavra de ordem: "Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jámas" (Ernesto Guevara). É preciso, ou desconsiderar o Cristianismo, ou "reler" a Bíblia a partir de outros princípios, para construir esta imagem de Jesus Cristo. Desconsiderar o Cristianismo porque é o mesmo "Filho do Homem" que responde a maliciosa questão dos fariseus se deveriam ou não pagar os impostos a César: "'Por que me quereis armar um laço? Mostrai-me um denário'. Apresentaram-lho. E ele perguntou-lhes: "De quem é esta imagem e a inscrição? – 'De César', responderam-lhe. Jesus então lhes replicou. 'Daí, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mc 12, 15-17 – Cf. Rom. 13, 1-7). Isto não significa conformismo, resignação, mas aponta o destino da mensagem cristã: o indivíduo e sua autoconsciência, reduto onde se dá a experiência efetiva da revelação, da conversão, da "graça". O mundo externo está submetido ao tempo, à corrupção, e à transitoriedade. A "idealização do Estado", por sua vez, é uma "abstração", sem realidade concreta. Por isso o Cristianismo se utiliza da simbologia do "coração", pois é nele que se realiza a mensagem do "amor", da "compaixão", para então ser o fundamento das virtudes, da justiça e da caridade. Agora, sobre a "releitura" da Bíblia, sobre os princípios utilizados para construir aquela imagem distorcida de Jesus Cristo, fica evidente quais são no próprio vocabulário utilizado por Dimas Ferreira: um amalgama do marxismo, socialismo, comunismo, que modela um "anti-imperialista", um "ativista social anti-burguês", quer dizer, "um revolucionário" – uma causa que, como acima destacado, o "filho do Homem" não defende. Ele que replica o Tentador no Deserto: "Não só de pão vive o homem [...]" (Deut. 8, 3) [Mat. 4, 4] – e proclama: "onde está o teu tesouro, lá também está teu coração" (Mt., 6, 21).


 


 

Tuesday, October 26, 2010

Um teólogo militante sob suspeita.

Bruno Braga.



Em um momento decisivo para o país, no qual serão firmados, ou reiterados, compromissos políticos, é oportuno analisar idéias e propostas; sobretudo quando elas deixam a esfera intelectual para balizar um plano de governo. A julgar por suas aparições e discursos em palanques de candidatos, quer dizer, "candidatas", este tem sido o itinerário das concepções do teólogo Leonardo Boff. Contudo, em vez de aceitá-las inadvertidamente, sob o mero "argumento de autoridade", ou seja, de serem idéias de um "intelectual", seria no mínimo prudente colocá-las sob uma análise crítica para verificar se têm, efetivamente, algum fundamento. Para evitar qualquer mal-entendido, é necessário fazer uma advertência preliminar: esta análise não tem nenhuma motivação político-partidária, embora o resultado possa induzir o eleitor a refletir sobre sua escolha – de qualquer modo, este breve texto tem somente uma motivação filosófica, trata-se de um esforço de compreensão.

Em um artigo intitulado "Pessimismo capitalista e o darwinismo social" (http://www.leonardoboff.com/site/lboff.htm), Leonardo Boff propõe uma "limitação" do egoísmo. Para isso seria necessário adotar "formas de cooperação", firmadas por mecanismos "adequados" de organização social e fundadas na substituição do "eu" pelo "nós".

Imaginar uma comunidade regida pelos princípios e pressupostos estabelecidos pelo teólogo gera, no leitor, conforto e satisfação: nela há bem-estar, cooperativismo, segurança, ausência de conflitos, preservação ambiental livre da exploração "irracional" e "predatória". Ocorre que, para passar do "plano ideal" para o concreto, e estabelecer uma sociedade nestes moldes, não basta apenas uma mudança legislativa: é necessário, indica Boff, "modificar o olhar das pessoas sobre a realidade", fazendo com que elas enxerguem o "outro" e mitiguem, assim, o seu egoísmo em favor do "nós". Antes de assumir um projeto desta envergadura é prudente verificar a sua viabilidade, sua base, estrutura de constituição, sem deixar de projetar as possíveis conseqüências de sua implementação. Para desenvolver esta análise é apropriado recorrer a outros pensadores e idéias – não com o objetivo de fazer prevalecer novamente o "argumento de autoridade", e sim tomá-los como "referência" para disputar a coerência da descrição dos fatos e, conseqüentemente, uma decisão refletida.

Uma das teses fundamentais do pensamento kantiano é a incapacidade de transpor a individualidade por meio do conhecimento teórico. O sujeito que conhece é necessariamente particularizado por seu aparato cognitivo, que impõe a individualidade do sujeito do conhecimento, e a pluralidade dos objetos que são conhecidos – um aparato que estabelece, ainda, a intermediação entre o sujeito e o mundo à sua volta. Em outras palavras, entre o "eu" e os "outros" há sempre algo que se interpõe, ou seja, o aparato cognitivo. Portanto, não é através deste "algo", quer dizer, do instrumental do conhecimento, que é possível ultrapassar a barreira entre o "ego" e o "outro", pois ele, o aparato cognitivo, é a própria barreira. Esta concepção gera não apenas um problema epistemológico – se o mundo é "real" ou apenas um produto das faculdades cognitivas - mas também um problema "ético": como fundamentar uma moral universal, e não contingente? Para solucionar o problema ético Kant fundou a moral em um imperativo da razão; não da "razão teórica", mas da "razão prática", legisladora para todo ser racional, independente e superior em relação à baixa faculdade de desejar. Assim, a moral kantiana está assentada sobre um "imperativo categórico" da "razão prática": "ajas de acordo com uma máxima que possa se tornar uma lei universal".

Embora o grande mestre de Königsberg tenha despertado a filosofia para um problema efetivo, a solução que apresentou para fundamentar a moral fora ineficaz. Porque a "escolha" de "uma máxima que possa se tornar lei universal", quer dizer, válida para todos, fica a cargo de um sujeito, de um "ego"; por sua vez, mesmo que o imperativo seja uma determinação da "razão prática", é, ainda, produto de "uma razão", ou seja, de uma ferramenta do aparato cognitivo que realiza a intermediação entre o "ego" e o mundo à sua volta. Nestes termos, para escolher uma "máxima" que possa se estendida a todos, o sujeito não teria a que recorrer, exceto a si mesmo, ao seu interesse e bem-estar particulares, para decidir – portanto, seja qual for a sua escolha, ainda que uma complexa elaboração racional, é, em última instância, uma escolha "egoísta".

Para tentar solucionar o problema deixado por Kant, Schopenhauer indica uma via: a autêntica moral está fundamentada em uma "experiência intuitiva", independente da razão, de conceitos abstratos, juízos, dogmas – enfim, sem qualquer intermediação do aparato cognitivo; algo independente da "vontade consciente" do indivíduo, que de maneira súbita, imediata, atravessa o véu da individualidade imposto pelas formas do conhecimento que separam o indivíduo de seu semelhante. Uma experiência "mística" – não "divina", mas absurda e terrível - através da qual o indivíduo reconhece no "outro" a sua mesma essência, que é também a do mundo todo: uma Vontade obscura e insaciável, una e indivisível, que iludida pelo instrumental cognitivo se agredia, violentava, mutilava cravando os dentes na própria carne; reconhecendo-se, nesta unidade essencial, agora se cala, se compadece. Para Schopenhauer este é o grande "mistério da ética", da "Compaixão", o autêntico fundamento da moral – restrito exclusivamente à dimensão e experiência do indivíduo: outras instâncias, como por exemplo, a política, do Estado e das leis, ou da religião dogmática e seus mandamentos, são elaborações da razão, ou seja, de um "ego" que as construiu para preservar seus "interesses", de acordo com as ilustrações, respectivamente o bem-estar, a propriedade e a vida do cidadão em sua comunidade, ou a "graça" para o fiel em sua existência terrena, e o Paraíso após sua morte.

Depois deste breve percurso por entre as teses de Kant e Schopenhauer, é preciso tomá-las, agora, como "referência" para analisar a proposta de Leonardo Boff, a superação do "eu" em direção ao "nós". A princípio Boff parece desprezar as lições dos filósofos alemães. Se de fato as considera, quando utiliza em seu texto o termo "limitação" – e não "eliminação" – o teólogo não percebe que, mesmo poética, bela, e sedutora, sua proposta é uma elaboração do "ego", é ainda "egoísta". Além de ser a "projeção" de um sujeito que deseja e quer uma sociedade adequada a tal "modelo", o próprio formato dado a ela não elimina a individualidade. As "formas de cooperação", pelo contrário, conservam os interesses particularidades, os desejos e ambições característicos de cada pessoa que compõe o grupo: a comunidade é apenas um meio, um instrumento, para proteger interesses gerais, como o conforto, o bem-estar, a vida, a propriedade, e permitir a realização de aspirações particulares, sejam elas profissionais, intelectuais, amorosas, e outras. Neste sentido, uma sociedade de "cooperação" é formada por indivíduos "egoístas" – mesmo quando eles se preocupam com a natureza, sua morada e nutriz, estão preocupados com a garantia de seus interesses gerais e particulares, e, em última instância, com a perpetuação da sua linhagem.

Diante do "egoísmo" generalizado, e irremediável em termos de organização social, a "cooperação" exige a determinação de regras que reprimam o egoísmo dos indivíduos em limites aceitáveis, de modo a permitir a convivência e as relações recíprocas. As leis serviriam para refrear, com o contra-argumento da punição certa e severa, as motivações egoístas: utilizando a metáfora schopenhaueriana, a legislação é como a focinheira que detém o cão faminto e furioso.

Boff não se atenta para o fato de que uma autêntica moral – totalmente destituída de interesses particulares - não é dada por critérios exteriores, ou seja, pela simples observação de que as pessoas vivem em "cooperação". Elas podem estabelecer relações recíprocas sobre motivações "egoístas", de modo que o "outro" seja apenas a garantia, e um meio, de sua realização particular. A autêntica atitude moral é confirmada apenas na interioridade, na consciência particular de cada sujeito, em uma experiência intuitiva e completamente "desinteressada", livre de dogmas, mandamentos, leis. Mas, não parece que as pessoas firmem relações ordinárias sob "êxtase místico" – embora não afastado definitivamente, este é um fenômeno raro e excepcional. Não fosse assim o teólogo não proporia uma "mudança radical".

Para que o "egoísmo" ceda espaço para o "nós" é preciso que haja uma mudança fundamental, diz Leonardo Boff, uma "mudança do olhar sobre a realidade". O que quer dizer o ilustre teólogo? Que é necessário enxergar as coisas como elas "deveriam ser" em um "mundo imaginário", e não como de fato são? Ou a proposta de Leonardo Boff é ainda mais audaciosa, quer dizer, modificar a própria natureza humana, reinventar uma nova forma de epistemologia, de ver e compreender o mundo? Certo é que a proposta do teólogo tem uma direção definida, rumo ao "nós", mitigando cada vez mais o "ego", a individualidade.

O texto de Leonardo Boff, realmente, não tem a pretensão de ser um tratado de política, nem mesmo um caderno de "plano de governo", especificando detalhadamente todos os projetos e atividades do poder público. Mas, seu "adital" é apenas uma nota de "esclarecimento" ou pretende o teólogo simplesmente "aditar", quer dizer "proporcionar dita ou felicidade", consolar seus leitores com belas palavras e um esperançoso discurso poético? A contar pela militância de Leonardo Boff - primeiro no lançamento da candidatura à presidência da república de Marina Silva; agora, no segundo turno, ao lado da candidata autora do PAC, programa criticado por ele mesmo como uma "racionalização do irracional" – suas idéias alcançam uma dimensão diferente, política: o plano do "grupo", do "partido" ao qual está associado, que lhe concede "autoridade" para modificar "a forma de ver" das pessoas. Porém, que "óculos" elas serão obrigadas a usar para "enxergar melhor"? Aqueles elaborados pelo "ego" dos seus partidários, disfarçados de "consciência social" ou coisa parecida? É no mínimo suspeito um programa sobre estas premissas... 

Enfim, em alguma coisa Leonardo Boff tem razão: as pessoas são mais que produtores e consumidores. Além disso, a miséria, a fome, o sofrimento e as mortes provocadas pela ganância desmedida, e com ela a má distribuição de renda, são moralmente condenáveis. No entanto, para reajustar esta balança e tornar a existência de algum modo mais tolerável, não é preciso uma obra de "engenharia humana", ou uma espécie de "pedagogia universal". Não é necessário reprimir a individualidade, o "ego", em detrimento de um abstrato e vazio "nós" – porque, se da lição schopenhaueriana é ainda possível extrair algo, ela indica que cada indivíduo carrega consigo a essência una e indivisível do mundo; embora seja ela obscura, impetuosa, corrompida, traz consigo a capacidade total da autêntica moral, sem necessitar de qualquer aditamento estranho, exterior. Se é um fenômeno raro e independente de sua vontade, ao indivíduo resta apenas um esforço incansável de compreensão do mundo e do "outro" - mesmo que a "realidade" seja sombria e tenebrosa, para que, do contrário, o cultivo da "honestidade intelectual" não seja suprimido por um "nós" transformado em um cruel e vigilante "super-ego".

Saturday, October 16, 2010

O "fenômeno religioso" no processo eleitoral de 2010.


Bruno Braga.

 
O segundo turno da disputa presidencial no Brasil tem sido fortemente carregado por uma atmosfera religiosa, destaca a imprensa nacional. Ocorre que, é um engano pensar que a fé, a crença, impregna a política apenas na segunda etapa do pleito. Na primeira fase foram muitos os candidatos que se elegeram para ocupar as câmaras estaduais, a câmara federal, e o senado, valendo-se de discursos religiosos: as crenças, os ritos e as Igrejas, foram utilizados para convencer o eleitor, ou o fiel, a confiarem-lhes um mandato – na esfera do poder executivo federal passou-se o mesmo; contudo, a candidata representante do "fator religioso" não venceu a corrida eleitoral. 

Marina Silva, do Partido Verde, expressou claramente o poder da religião no primeiro turno das eleições. Logo no lançamento de sua candidatura o discurso de um teólogo: Leonardo Boff, que defende um tipo peculiar de Ecologia [http://www.leonardoboff.com/site/lboff.htm], que envolve não apenas a questão ambiental, mas também, uma ecologia social, uma mental, e a integral, interligadas, obviamente, na unidade divina. Idéias que transparecem no discurso da candidata Marina Silva: nas propostas ambientais para um desenvolvimento sustentável; no modelo de governo, fundado na "conciliação", no qual as pessoas estariam unidas, todas, independentemente da classe e dos interesses, de "mãos dadas" para o "bem" do Brasil. Além do discurso, Marina se apresenta como uma "entidade espiritual" – veste-se com trajes que remetem às suas raízes no estado do Acre, adornados com xales pomposos e rústicos; esforça-se para manter uma expressão facial serena, tranqüila – Marina parece uma divindade indígena, um pouco "sofisticada", saída diretamente da floresta. Mas, em vez da ritual indígena, do "paganismo", Marina pertence à "Assembléia de Deus", Igreja evangélica que lhe concedeu, através de seus fiéis, um bom número de votos. Não suficientes, é verdade, para conduzirem a sua predileta ao segundo turno das eleições, mas fundamentais para fortalecerem a imagem da candidata. Outra porcentagem dos votos recebidos por Marina Silva está associada justamente à sua imagem "sacro-santa", que induz o eleitor a pressupor, nela, a moral, a ética, que tanto faltam à reputação pública do político em geral. E a última parcela do eleitorado de Marina é a dos que votaram por "protesto", escolhendo alguém diferente dos dois pólos partidários principais, PT-PSDB – porém, um protesto fundado na imagem da candidata e sua suposta moralidade.

O "fenômeno Marina" na reta final do primeiro turno foi fundamentalmente explicado pelo voto em uma "opção diferente" – o elemento "religioso", no entanto, que tanto contribuiu para a sua escalada, foi desprezado, uma vez que esteve "velado". Agora, no segundo turno das eleições, quando a religião é trazida a primeiro plano, verifica-se que ela esteve sempre presente. Permanece para robustecer a imagem de Marina Silva, cortejada pelos dois candidatos que permanecem na disputa, e é perpetuada no conteúdo dos debates entre os dois candidatos que disputam o segundo turno.

José Serra afirma, em tom de "acusação", que Dilma Rousseff, se eleita, irá legalizar o aborto – uma heresia sem perdão para os fiéis. A esposa do candidato participa da campanha, diz que Dilma é a favor de "matar criancinhas" [http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/monica-serra-dilma-e-a-favor-de-matar-criancinhas]. Em homilias e sermões, padres e pastores também "pregam". O debate passa a ser, não mais político, mas "teológico". Sob pressão, e temendo perder os votos da imensa comunidade religiosa, os candidatos julgam necessário afirmar suas crenças: uma aparece em foto, coberta por com um véu, sendo abençoada pelo o Papa [http://blog.missadesempre.com/2008/11/dona-marisa-e-dilma-rousseff-usando-vu.html]; o outro anda acompanhado, freqüentemente, de alguém que, além de recém eleito governador do maior Estado do Brasil, apresenta fortes evidências de pertencer à Opus Dei [http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,,EPT1107598-1664,00.html].

Dilma, foco dos "ataques", quer dizer, das "acusações", é chamada a afirmar, provar, publicamente sua fé, declarar abertamente suas crenças. José Serra exige, no primeiro debate televisionado do segundo turno, que Dilma afirme claramente a existência de Deus [http://videos.band.com.br/] – algo que seu padrinho político negou, e por isso teve maculada sua imagem pública. Dilma ganha, como testemunha de defesa um religioso, Frei Betto – amigos de infância, e companheiros, embora em alojamentos distintos, de cárcere, assegura o frei: Dilma é "pessoa de fé cristã", e não contrária aos "princípios evangélicos" [http://www.revistaforum.com.br/blog/2010/10/10/frei-betto-dilma-e-a-fe-crista/].

Esta breve, e precária, reconstrução do cenário da disputa pela cadeira presidencial pretende apontar a força da religião neste momento de decisão política. Contudo, não sob motivação carismática, e sim em tom de denúncia: o perigo de fazer das doutrinas de fé a autoridade suprema para decidir temas relevantes para a sociedade em geral – temas considerados "polêmicos", como o "aborto", a "união homossexual", e, inclusive, a pesquisas e utilização de células-tronco em tratamentos médicos. Compromissos têm sido firmados através de declarações públicas, "carta de intenções" - acordos estabelecidos apenas com autoridades religiosas sobre estas e outras questões. Medidas unilaterais que desprezam não só o bem-estar, a saúde, e a vida, das pessoas diretamente envolvidas com as questões "polêmicas", mas também ignoram o conhecimento científico. Este poder deve ser dado à religião? São, de fato, as autoridades religiosas, detentoras da autêntica moral, da ética, e também do conhecimento? Aliás, "crer em Deus" é pré-requisito para ser presidente do Brasil? A religião chancela definitivamente a reputação do indivíduo? O mal é cometido não só por partidos políticos, ou empunhando-se a bandeira da nação, mas também em nome de Deus. O velho dito espanhol, utilizado como metáfora religiosa, é um alerta pertinente neste momento, para evitar terríveis conseqüências futuras: "Detras de la cruz está el Diablo" (apud SCHOPENHAUER, 2000, PPII, p. 360).

Monday, July 26, 2010

Liberdade para escolher o próprio caráter?

Bruno Braga.




É sempre oportuno interrogar o próprio caráter: é um exercício de grande valia para, simultaneamente, examinar as idéias enraizadas na mente e as do imaginário popular – idéias muitas vezes confusas, vazias, sustentadas irrefletidamente.

Pensar a partir do caráter individual é uma escolha estratégica, sobretudo porque a imensa maioria das pessoas tem como certo que a personalidade, a essência interior, particular, é enformada pelo exterior – em outras palavras, o sujeito seria um produto do meio no qual está inserido: é moldado pela instrução dada pelos pais e pela educação ministrada pelas instituições de ensino; é formatado pelas circunstâncias históricas de uma época, as condições sociais e econômicas, pelos infortúnios e sucessos da vida particular, enfim, por tudo aquilo que o cerca e concorre para configurar o seu contexto. No entanto, seria no mínimo conveniente, para testar as duas vias possíveis de reflexão, questionar se de fato não ocorre o inverso, quer dizer, que o caráter subjetivo é pré-formado, dado a priori, e tudo aquilo que se coloca à sua volta, sob as condições do espaço, do tempo, serve apenas como estímulo para que a unidade essencial e interior possa emergir. Nestes termos, cada um carregaria, até o fim de sua curta e miserável existência, seu único e imutável caráter – embora incapaz de conhecê-lo previamente, ou de apreendê-lo por completo em uma só visada, o indivíduo é conduzido às escuras por seu núcleo primordial: o reconhece de forma opaca, turva, imiscuído em meio às atribulações de sua vida, da jornada hesitante, frustrada, que faz desmoronar gradativamente o imaginário daquilo que “acredita” ou ainda “espera ser”, recolhendo pistas consternadoras e brutais do que de fato é.

A contemporaneidade impõe dificuldades para pensar a aprioridade do caráter individual, e as diferenças previamente estabelecidas entre eles - talvez dois destes obstáculos sejam mais evidentes: o primeiro, a vida em uma sociedade de massa, na qual um padrão de existência precisa ser obedecido; o segundo, inerente ao anterior, na forma de uma compensação ilusória pela massificação, é um suposto respeito à diversidade e liberdade de escolha – porém, estes são dados em um plano superficial, importante, mas no nível dos trajes, da formação de grupos e “tribos”, na culinária, nas artes e manifestações culturais. Subjacente, no entanto, ao envoltório externo, aos adornos e atavios da aparência, o caráter, a moral individual, permanece protegido. A liberdade, pronunciada com orgulho pela contemporaneidade, neste fundo interior, obscuro, parece absolutamente estéril.

A livre escolha, diferente da imponência do discurso, agora se torna algo nebuloso, fantasmagórico. É colocada em cheque não apenas pela massificação da oferta do mesmo, no nível da exterioridade: até mesmo a tentativa de fuga da homogeneidade é inútil, restrita à superficialidade, sob a ameaça de ser meramente exótico. Então, a partir da proposta de conversão da análise, refletindo a partir da individualidade, é necessário lançar uma questão ainda mais radical – para além dos trajes, das opções de mercado, das inúmeras formas de divertimento, das artes e da cultura em geral, que conservam grande importância, mas não esgotam a existência – é preciso se perguntar: assim como se escolhe a cor da roupa, o prato e o sabor da refeição, o destino da viagem e a forma de diversão, é permitido escolher o próprio caráter, a personalidade individual, ou seja, a essência moral?

Wednesday, June 09, 2010

Reflexão ética II.


Bruno Braga.

 
É preciso pensar sobre a relevância de uma "reflexão ética" no interior dos paradigmas da técnica e do prazer – modelos que regem a vida cotidiana na contemporaneidade. Não se trata de exorcizar a busca por satisfação, ou o gozo; nem mesmo de condenar a utilização dos sofisticados aparatos tecnológicos. Tanto o prazer, como o usufruto de mecanismos que facilitam atividades rotineiras, que eliminam determinados inconvenientes da existência, são benefícios incontestáveis. No entanto, são elementos que, sozinhos, não preenchem completamente a vida, como se esforça a "propaganda" para persuadir, de forma apelativa. Um domínio reduzido a maquinarias, e indivíduos que simplesmente operam estas tecnologias, é, de forma paradoxal, estéril: porque, se produz instrumentos em escalas cada vez maiores, não fecunda a dimensão interior e subjetiva de seus operadores, atrofiada e repreendida pela execução robotizada de tarefas mecânicas. Por sua vez, um ambiente habitado por pessoas preocupadas apenas com o gozo estaria marcado: por um lado, pelo conflito generalizado, já que todos buscariam, de forma desmedida, a satisfação de seus desejos particulares; por outro, pelo profundo entorpecimento dos capazes de satisfazerem imediatamente seus desejos, atormentado pelo tédio, e alheios à presença do "outro". Ocorre que, embora o egoísmo seja algo "congênito", e por isso cada indivíduo permanece preso ao seu próprio mundo, o particular está interligado por uma "teia" de relações a "outros" semelhantes, às coisas, ao mundo, além de situar-se na história.

Sob as duas perspectivas mencionadas - a de um domínio simplesmente técnico, e a caracterizada pela busca cega por prazer - em ambas, seja considerado na relação consigo mesmo, ou na interligação com o mundo, o indivíduo aparece cindido: não apenas o externo, o "outro", lhe é estranho, mas, para si mesmo, é um desconhecido. Esta sensação de "estranhamento" pode ser uma abertura para o esforço de "compreensão" angustiado: "o que sou?"; "por que sou assim?"; "qual a razão destes eventos, destas fatalidades?"; "como devo agir?"; "o que devo esperar?" – questões clássicas entre as ponderações filosóficas. No entanto, não são problemas restritos às altas elucubrações dos pensadores catedráticos, e perpassam sim, independentemente da sofisticação conceitual, a mente de qualquer pessoa. Esta obscuridade estimula, no interior do próprio indivíduo, uma tentativa de "compreensão" de si e do mundo, do seu interior sombrio e o "outro" estranho. Seria este, então, o domínio da "reflexão ética", enquanto o intermediador entre a individualidade e a exterioridade. Ocorre que este tipo de "reflexão" não oferta fórmulas certas e fáceis para um enigma que parece indecifrável, mas se faz no "esforço" de "compreensão" intelectual para agir no mundo – entender as dimensões da "realização", da "satisfação", do viver "com-o-outro", "conviver". Algo que o maquinário tecnológico e a busca desenfreada por prazer não respondem.

 

 

Sunday, May 16, 2010

Reflexão ética.


Bruno Braga.

 

 
A reflexão ética não pode afastar de seu arcabouço a dimensão exterior da existência, isto é, as relações "comunitárias" . Porque o domínio ético envolve não apenas a intimidade subjetiva, mas também a "convivência" com o "outro" – estes dois elementos, o íntimo e o público, estão em uma relação indissociável: o indivíduo está inevitavelmente inserido em um meio comunitário, que de algum modo lhe afeta; por sua vez, a comunidade é formada por inúmeros indivíduos, cada um deles com seu caráter, sua índole e temperamento peculiares. Sendo assim, uma ética que dispense qualquer destes elementos é uma reflexão mutilada.

Pôr de parte o público, o comunitário, é distanciar do indivíduo algo que é de seu próprio "interesse" – pois a ética envolve sim "interesses", e por isso precisa incluir na balança, ainda que por pura ambição particular, a dimensão exterior da existência. No entanto, o ético nem sempre carrega consigo a moralidade, já que a simples presença do "interesse" a obsta completamente – "moral" e "interesse" são pólos opostos: porque na atitude moral não há qualquer interesse individual em jogo, quer dizer, não há bem-estar, propriedade, e nem mesmo o apego à própria vida, que impeçam o acolhimento do "outro". Atitude reconhecida no desprendimento, no desapego, dos santos e místicos de todas as religiões, e, para além da excepcionalidade, nos "heróis anônimos" do cotidiano, que se arriscam, sem hesitação, para salvar o desconhecido do perigo. O sentimento ilimitado da moralidade supera o egoísmo inato e congênito que faz da existência uma busca desmedida por satisfação, prazer, e minoração do sofrimento perene. Porém, são justamente estes fatores que compõem a base da reflexão ética: ampliados da dimensão particular para a pública, para a "comunidade" – discute-se a satisfação, o prazer e a diminuição dos sofrimentos em relação à vida comum, à convivência.

A ética, assim colocada, é uma espécie de "egoísmo generalizado". Isto, por sua vez, não diminui em nada suas vantagens e benefícios – pelo contrário, pois, por levar em conta os interesses apontados, estende-se a todos. Em uma análise superficial primeira, o elemento universal da ética, diferente da moral, não seria a "essência" do mundo - o núcleo compartilhado entre tudo e todos que, para além da aparência do particular, é uno - mas o "interesse" comum: uma tentativa de refrear o egoísmo congênito e permitir relações menos tensas entre os homens, conter sua agressividade essencial, e tornar sustentável o mundo natural em que vivem. Uma reflexão, posta unicamente sob esta perspectiva, não poderia estar fundada na "transcendência" moral, na "identificação" com o "outro", na sensibilidade para com o sofrimento animal, ou a comunhão com a natureza. Porque a própria discussão abstrata - como a reflexão ética – utilizando-se de generalizações como "comunidade", de artificialidades conceituais, impede a imediatez e intuitividade do sentimento moral.

De qualquer forma, qual o prejuízo, a princípio, da ausência da moralidade para a reflexão ética e seus desdobramentos normativos? Parece que o transtorno se dá pela perda de uma envoltura "nobre", a "estética" do sentimento de renúncia, do amor universal, ou seja, da própria moral. Este prejuízo, longe de ser a perda de algo essencial, é, antes, preciosismo e vaidade. Assumir que a ética para uma comunidade é um "egoísmo generalizado" já seria um ato de honestidade, e por isso, "ético". Porque se a discussão pretende estabelecer normas, regras, princípios, leis, o elemento fundamental é o "interesse": os interlocutores, tendo como pano de fundo a satisfação, o prazer e a minoração dos sofrimentos, decidem sobre a proteção de seus "interesses comuns". O moral, por sua vez, refere-se a algo outro: não dogmático, não abstrato, mas intuitivo, súbito e imediato – por isso a moralidade é um problema do próprio indivíduo, e não do público. O que não o impede de transitar moralmente entre as regras de convivência, desde que a partir de sua experiência intuitiva, imediata e "vivida": qualquer abstração posterior é secundária e artificial.

A reflexão ética necessita ampliar seu espectro: não restringir-se a ambições particulares, mas incluir os "interesses" da comunidade na qual o próprio indivíduo está inserido, ou seja, a particularidades deste grupo, suas relações internas e externas, sua história, e também as individualidades dos que a formam - ponderar não apenas a polaridade entre o individual e o comunitário, mas interação ininterrupta entre ambos. Isto gera, por conseguinte, uma auto-reflexão sobre a própria ética. Porém, colocar a questão ética sob o invólucro da moralidade, ou seja, sentimento, amor universal, identificação com o "outro", apenas para mobilizar a comunidade, tem um alcance limitado. Porque a abstração da discussão obsta a experiência imediata do moral, a intuição, a "diluição" do indivíduo no mundo. No domínio da abstração, do debate conceitual, trata-se da ponderação de "interesses". Portanto, se o propósito é mobilizar, estimular a "convivência" respeitosa, discutir abertamente os "interesses" parece ter uma capacidade mais efetiva. Em uma discussão deste caráter, a particularidade, o interesse privado, em função do "egoísmo congênito", é o que há de mais próximo, imediato, ou seja, é o que está enraizado no coração do sujeito, e o que lhe fala mais alto. Por sua vez, fundamental, em um debate ético sob este ângulo, é esclarecer a necessidade de ampliar este egoísmo particular para a comunidade, ou seja, tornar claro que, a vida em comum, para preservar o bem-estar, possibilitar a realização das ambições pessoais, e mitigar a miséria da existência, precisa de princípios reguladores. A "convivência" seria a recompensa para quem segue as regras, e a punição certa a reação imediata para aqueles que as descumprem. Resta, no entanto, uma dificuldade que mesmo a regulamentação é incapaz de eliminar: a definição dos "bens essenciais" a serem protegidos – porque a legislação orienta relações civis, penais, administrativas, mas o faz sobre um solo fundamental, que interconecta tudo e todos. Aqui se faz necessário o elemento moral: não sob invólucros artificiais, estéticos, abstrações vazias, e sim o reconhecimento da unidade subjacente à pluralidade, da essência, não apenas da comunidade, mas do mundo. Reconhecer estes bens em meio às tumultuadas relações entre as pessoas é um evento excepcional, definitivamente moral – algo que se passa no domínio particular.

O problema para a ética não é primeiro transformar o mundo, mas antes "construir" o indivíduo. O domínio exterior, através do qual a multidão se espalha por todos os cantos, é a dimensão da multiplicidade, onde inúmeros caracteres se amontoam em uma busca cega e desenfreada pela satisfação de suas ambições. O controle que se tem desta imensa diversidade é completamente precário: os costumes, a religião, as leis, são açaimos frágeis para conterem animais sedentos. Além disso, seria o caso de se questionar a pretensão, ou melhor, a vaidade, daquele que acredita ter legitimidade para ditar a todos as suas regras particulares, tendo, assim, a comunidade sob sua tutela. Por outro lado, o indivíduo tem de si uma proximidade maior que em relação aos "outros" – não de maneira simples e inocente, já que há sempre um resquício de obscuridade que impede o sujeito de obter um autoconhecimento límpido. Mas é o "esforço" mesmo o seu único, e maior, consolo enquanto tentativa de compreender seu caráter individual. Embora este núcleo não dependa de seu arbítrio, compreendê-lo, e de alguma forma, arranjá-lo à própria imagem refletida, e às relações com os "outros", é uma tentativa de "construção" de si mesmo.

Para que esta posição não seja acusada de um individualismo absoluto, é preciso dizer: a compreensão de si envolve também a do "outro". É uma espécie de espelhamento, cujo reflexo revela a essência de ambos – angústia, sofrimento, dor e miséria. Ainda que as personalidades, comportamentos, enfim, os caracteres sejam diversos, o núcleo padecente é comum a todos – porque é o que resta, ao eliminar todos os traços particulares, não importando o que o indivíduo é ou o que ele tem. Por isso, na medida em que se escava para além das particularidades, no fundo obscuro do recolhimento interior, se revela, ao mesmo tempo, a essência do mundo – este desvelamento é já o domínio da moral. A ética, por sua vez, é o "esforço" para manter-se na trilha da compreensão. Não tem o destino como único alvo: porque ao longo do árduo e penoso caminho inúmeros frutos são recolhidos, "acolhidos": elimina-se, gradualmente, as diferenças, aproximando o "outro" até então distante, afastado.

Nestes termos, o compromisso consigo mesmo é, desde já, um envolvimento com o mundo – não se trata simplesmente de transformar o exterior, mas descobrir o que cada qual reserva em seu interior, o núcleo comum a todas as individualidades. Construção de si mesmo é um esforço de edificação, mas ao mesmo tempo de aniquilamento. As tentativas de compreensão, estudos, experiências, escolhas destroem modelos assumidos irrefletidamente - ao mesmo tempo em que tencionam com a deterioração do corpo, em direção à morte. Embora qualquer "esforço" seja, em última instância, um fracasso antecipadamente anunciado, este parece ser o único compromisso digno diante da miséria da vida: o compromisso consigo mesmo, que é, essencialmente, um envolvimento com o "outro" e com o mundo, base para uma "ética comunitária".