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Sunday, December 25, 2011

O Mistério do Filho do Homem.


Bruno Braga.

 
A vida e a morte de Jesus. O enigma do nascimento do filho de Maria e o significado da sua morte na cruz. A vida do Cristo como a misteriosa união do transcendente, do metafísico, com o temporal e corruptível – o logos, o verbo divino que se fez carne. A sua morte significativamente expressa no ato da crucificação: no pólo vertical e inferior da cruz, a alma, e o seu oposto a transcendência, a metafísica divina; no eixo horizontal, de um lado, a sociedade, do outro, o Cosmos. A vida, paixão e morte de Jesus Cristo revelam a tensão radical entre os extremos da cruz, e o filho de Deus pregado no centro do instrumento do suplício, onde todas as dimensões se fundem – Alma, Deus, Sociedade e Cosmos. A consumação de um mistério como o exemplo da vida cristã: o esforço de reconciliação do indivíduo que não é Deus, mas que, independentemente da sua miséria e corrupção, é portador do logos divino; um empenho de superação da divinização do Cosmos e da Sociedade, porque o eixo horizontal da cruz não se sustenta sem a sua estrutura vertical.

 
Cf. BRAGA, Bruno. "Pai e Filho – ou o Homem consigo mesmo" [http://b-braga.blogspot.com.br/2011/08/pai-e-filho-ou-o-homem-consigo-mesmo_14.html].

 

 

Tuesday, December 20, 2011

Revolvendo o subterrâneo.


Bruno Braga.

 
Entre as grandes obras da literatura universal está "Memórias do Subterrâneo", de Dostoievski. Conhecida pelo nome do seu ilustre autor, também foi divulgada através da cultura por sua relação com um leitor especial que alcançou a popularidade - Nietzsche. No entanto, um aspecto do pensamento do filósofo alemão que preserva a correspondência com o romance de Dostoievski é, por causa de uma sutileza, o agravamento indesejado da doença do próprio protagonista da ficção.

O "homem subterrâneo" do escritor russo é a imagem do ressentimento e da decadência descritos por Nietzsche – desde o seu abismo interior, é assim que o próprio personagem as confessa na abertura da narrativa: "Sou um homem doente... Sou mau" (2004, p. 665). E a maldade dele era não ser tão mal quanto se julgava: nas situações de domínio não possuía a força e o vigor para se afirmar (p. 666). Contudo, fixar somente a correspondência entre o subterrâneo doentio e o ressentimento nietzschiano afasta a possibilidade de reconhecer, na ficção, um elemento que afasta os dois autores: uma compreensão excepcional que arrebata o personagem quando ele se encontra com a prostituta Lisa - "Via agora claramente como é absurda e repugnante a libertinagem, que começa brutalmente, sem amor nem pudor, por aquilo que deve ser o remate verdadeiro do amor" (p. 720). Uma compreensão gravada simbolicamente após a exortação moral que tenta persuadir a jovem a deixar de ser uma "mulher da vida", no momento em que o protagonista ilumina com um candeeiro o quarto sombrio onde antes aqueles dois mal viam as faces um do outro. Esta era a "verdade odiosa" revelada ao personagem: a superioridade que um doente, uma alma fechada, sedenta por afirmação, revoltada, é incapaz de aceitar – o "horror" da compaixão (p. 733).

Mesmo depois da experiência fundante inegável, o personagem insiste em suspeitar dos seus sentimentos. Porque para ele o amor era sinônimo de tiranizar e dominar moralmente (p. 746). Abraçado à prostituta, vertendo lágrimas, o protagonista exclama: "Não me deixam... Não posso ser... bom!" Sob a sombra da dúvida e da suspeita, conseqüentemente, ele negava o sentimento que o aproximou daquela prostituta.

Na obra de Dostoievski é o próprio personagem quem narra a sua história, em um ato de confissão. Ele estava ciente da sua corrupção, da sua doença – o que as suas palavras iniciais atestam e diagnosticam - embora persista, com certo prazer e consolo no fracasso, na busca do seu ideal de virtude. O encontro com a prostituta revela-lhe a sua própria doença através da "verdade odiosa": a superioridade do sentimento, do amor e da compaixão. Ocorre a inversão dos papéis que confunde o personagem: a prostituta torna-se a heroína, e ele a criatura humilhada e ofendida (p. 745).

Mas há uma inversão ainda mais radical, a inversão nietzschiana. Ela potencializa e transforma a doença do "homem subterrâneo" em ideal de virtude quando proclama a transvaloração de todos os valores, a vontade de potência, e a necessária superação da moral e da compaixão. Uma ambição doentia, percebida assim pelo protagonista da ficção quando ele se encontra com a prostituta: não por causa da sua conduta, tão libertina quanto à da jovem, mas por revelar-lhe a superioridade de um sentimento do qual a prostituta não se envergonhava, mas ele se esforçava para negar – ele duvida e suspeita do que preenche o seu coração com toda a sinceridade. Uma suspeita semelhante à que Nietzsche lança sobre as virtudes e sentimentos mais nobres quando diagnóstica a doença cristã.

Há, contudo, uma diferença fundamental entre o personagem de Dostoievski e o filósofo alemão: o primeiro estava consciente de sua doença, enquanto o outro, em seus arroubos de auto-glorificação do "Übermensch", termina os seus dias compadecendo-se de um cavalo. De qualquer modo, o trágico ideal nietzschiano ainda era uma reivindicação individual. Hoje, porém, uma elite intelectual o preserva como fundamento de um projeto de pedagogia universal e de ação política - em completo estado de torpor patológico, eles querem "transformar o mundo", forjando, a cada estação, um "bem", uma "verdade", uma "moral".

 

(*) Nota. A referência para a obra do escritor russo é: DOSTOIEVSKI, Fiódor. Memórias do Subterrâneo. Editora Nova Aguillar: Rio de Janeiro, 2004. Coleção Obra Completa, Vol. II. p. 661.