Bruno Braga.
É sempre oportuno interrogar o próprio caráter: é um exercício de grande valia para, simultaneamente, examinar as idéias enraizadas na mente e as do imaginário popular – idéias muitas vezes confusas, vazias, sustentadas irrefletidamente.
Pensar a partir do caráter individual é uma escolha estratégica, sobretudo porque a imensa maioria das pessoas tem como certo que a personalidade, a essência interior, particular, é enformada pelo exterior – em outras palavras, o sujeito seria um produto do meio no qual está inserido: é moldado pela instrução dada pelos pais e pela educação ministrada pelas instituições de ensino; é formatado pelas circunstâncias históricas de uma época, as condições sociais e econômicas, pelos infortúnios e sucessos da vida particular, enfim, por tudo aquilo que o cerca e concorre para configurar o seu contexto. No entanto, seria no mínimo conveniente, para testar as duas vias possíveis de reflexão, questionar se de fato não ocorre o inverso, quer dizer, que o caráter subjetivo é pré-formado, dado a priori, e tudo aquilo que se coloca à sua volta, sob as condições do espaço, do tempo, serve apenas como estímulo para que a unidade essencial e interior possa emergir. Nestes termos, cada um carregaria, até o fim de sua curta e miserável existência, seu único e imutável caráter – embora incapaz de conhecê-lo previamente, ou de apreendê-lo por completo em uma só visada, o indivíduo é conduzido às escuras por seu núcleo primordial: o reconhece de forma opaca, turva, imiscuído em meio às atribulações de sua vida, da jornada hesitante, frustrada, que faz desmoronar gradativamente o imaginário daquilo que “acredita” ou ainda “espera ser”, recolhendo pistas consternadoras e brutais do que de fato é.
A contemporaneidade impõe dificuldades para pensar a aprioridade do caráter individual, e as diferenças previamente estabelecidas entre eles - talvez dois destes obstáculos sejam mais evidentes: o primeiro, a vida em uma sociedade de massa, na qual um padrão de existência precisa ser obedecido; o segundo, inerente ao anterior, na forma de uma compensação ilusória pela massificação, é um suposto respeito à diversidade e liberdade de escolha – porém, estes são dados em um plano superficial, importante, mas no nível dos trajes, da formação de grupos e “tribos”, na culinária, nas artes e manifestações culturais. Subjacente, no entanto, ao envoltório externo, aos adornos e atavios da aparência, o caráter, a moral individual, permanece protegido. A liberdade, pronunciada com orgulho pela contemporaneidade, neste fundo interior, obscuro, parece absolutamente estéril.
A livre escolha, diferente da imponência do discurso, agora se torna algo nebuloso, fantasmagórico. É colocada em cheque não apenas pela massificação da oferta do mesmo, no nível da exterioridade: até mesmo a tentativa de fuga da homogeneidade é inútil, restrita à superficialidade, sob a ameaça de ser meramente exótico. Então, a partir da proposta de conversão da análise, refletindo a partir da individualidade, é necessário lançar uma questão ainda mais radical – para além dos trajes, das opções de mercado, das inúmeras formas de divertimento, das artes e da cultura em geral, que conservam grande importância, mas não esgotam a existência – é preciso se perguntar: assim como se escolhe a cor da roupa, o prato e o sabor da refeição, o destino da viagem e a forma de diversão, é permitido escolher o próprio caráter, a personalidade individual, ou seja, a essência moral?