Bruno Braga.
Material para estudo.
I.
"O segundo ponto relevante para a teoria política diz respeito às CARACTERÍSTICAS SOCIAIS das PESSOAS com maior probabilidade de se tornar membros da nova comunidade [cristã]. A principal fonte para compreender a questão vem nos dois grandes sermões, o Sermão da Planície, em Lucas, 6, 17-49, e o Sermão da Montanha, em Mateus 5-7. Provêm, claramente, do mesmo grupo de 'logia', mas a seleção e o trabalho da edição realçam ASPECTOS DIFERENTES do problema. O SERMÃO DA PLANÍCIE realça A PREFERÊNCIA PELOS POBRES sobre os ricos ('Felizes os pobres'); o SERMÃO DA MONTANHA ESPIRITUALIZA as características ('Felizes os pobres no espírito'). AS DIFERENÇAS nos dois conjuntos de bem-aventuranças não devem, contudo, ser sobrestimadas. SERIA ARBITRÁRIO SUPOR QUE A VERSÃO DE LUCAS É A ORIGINAL E A PROVA DE QUE JESUS ERA UM REVOLUCIONÁRIO SOCIAL QUE QUERIA ATACAR OS RICOS, ao passo que o texto de Mateus coloca uma interpretação nova sobre os ditos originais. O problema é outro. A PERGUNTA SOBRE A PROPRIEDADE E A RIQUEZA NÃO É CONSIDERADA UM PROBLEMA SOCIAL, MAS PESSOAL. A posse de riqueza é um OBSTÁCULO PESSOAL para que o homem rico consiga a 'metanoia' ['conversão'] completa. O ENVOLVIMENTO NOS VARIADOS INTERESSES MUNDANOS que vêm com a riqueza DIFICULTA que O CORAÇÃO SE VOLTE para o ponto em que a intelecção do que é correto, e o desejo de fazê-lo, determina a conduta da vida e DIRIGE-O PARA O IMINENTE REINO DOS CÉUS. O REINO QUE NÃO É DESTE MUNDO É MAIS FACILMENTE ACESSÍVEL AOS QUE POUCO INVESTIRAM NO MUNDO".
II.
"A ideia do Evangelho pode tornar-se mais clara quando a comparamos com uma teoria política moderna que assume uma atitude fundamental similar. KARL MARX, nos primeiros escritos, desenvolveu uma TEORIA DO PROLETARIADO que se assemelha em alguns aspectos à ideia evangélica das vantagens peculiares dos pobres sobre os ricos, na constituição da comunidade futura. O PROLETÁRIO é, de acordo com Marx, uma pessoa que está fora da sociedade burguesa, centrada na propriedade, pois não possui qualquer propriedade. O PROLETARIADO é 'UMA CLASSE QUE NÃO É UMA CLASSE' propriamente dita, PORQUE NÃO SE INTEGRA NA HIERARQUIA DOS PRIVILÉGIOS; o proletariado não tem privilégios dentro da sociedade burguesa. No proletariado, a sociedade burguesa alcançou a sua própria negação. 'Se o proletariado anuncia a dissolução da ordem atual do mundo, apenas publica o mistério de sua própria existência que é a dissolução real desta ordem do mundo'. A PERSPECTIVA ESCATOLÓGICA É MUITO SEMELHANTE À DO EVANGELHO. Há 'a ordem atual do mundo', o éon de iniquidade e miséria; esta ordem será necessariamente substituída por uma nova; o sintoma da dissolução da velha ordem e do advento da ordem nova é o crescimento de um povo que não seja 'deste mundo', mas que já pertence ao novo. A pertença ao mundo novo é o 'mistério' dos proletários, SÃO A VANGUARDA DO NOVO e adquirem esta distinção através 'do caráter universal do seu sofrimento'. Os proletários não são subprivilegiados; a sua miséria não pode ser remediada conferindo 'privilégios'; a sua situação os coloca fora de toda reforma possível da ordem atual. A DESTRUIÇÃO COMPLETA DA ORDEM ATUAL É PRÉ-CONDIÇÃO 'DA RECUPERAÇÃO COMPLETA DO ESTATUTO HUMANO'. Essa 'recuperação do estatuto humano' tem que ser provocada pela 'EMANCIPAÇÃO' da ordem atual; A 'EMANCIPAÇÃO' DE MARX É A CATEGORIA QUE CORRESPONDE À 'METANOIA' ['conversão'] NO EVANGELHO.
"A ESTRUTURA GERAL do mito escatológico de Marx é, assim, A MESMA que a do Evangelho. DIFEREM, contudo, no CONTEÚDO. A ESCATOLOGIA MARXISTA trata, certamente, de UMA ORDEM SOCIAL; a ORDEM SOCIAL TEM QUE SER MUDADA e as características sociais do proletário são a base para a expectativa escatológica. O EVANGELHO trata de UM EVENTO NA ORDEM DIVINA DO MUNDO; a qualificação das pessoas para pertencer ao reino é incidental à questão essencial da transformação da alma. O REINO DO EVANGELHO ESTARÁ LIVRE DA AFLIÇÃO TERRENA (TRABALHO, SEXO, MORTE) E ESTÁ 'IMINENTE' - espera-se que venha nesta geração e pode chegar a qualquer dia. AS QUESTÕES SOBRE A PROPRIEDADE, PORTANTO, NÃO TÊM QUALQUER IMPORTÂNCIA NO ENSINO DE JESUS. Na comunidade cristã primitiva, não há qualquer objeção ao rico como tal, embora se espere dele, como sintoma da sua 'metanoia' ['conversão'] sincera, que compartilhe a riqueza com os seus irmãos porque, de qualquer maneira, não tem utilidade terrena para ele. Portanto, É ESTRITAMENTE IMPOSSÍVEL DERIVAR QUALQUER IDEIA 'COMUNISTA' DO EVANGELHO, SE ENTENDERMOS O COMUNISMO COMO A REPARTIÇÃO DA PROPRIEDADE NUMA ORDEM SOCIAL DURADOURA; O 'COMUNISMO' CRISTÃO PRIMITIVO É UM FENÔMENO ESCATOLÓGICO, NÃO É UM PROGRAMA DE REFORMA SOCIAL. Típica desta atitude para com a propriedade é a história relatada no segundo volume de Lucas (Atos 5, 1-11). Um casal, Ananias e Safira, vende as suas posses, traz o dinheiro aos apóstolos, para uso da comunidade, mas retém parte dele. O apóstolo repreende-os: as posses eram deles e ninguém as quis; quando as venderam, o dinheiro era deles e, ainda assim, ninguém o quis; mas quando trouxeram o dinheiro aos apóstolos, fingindo que eram todas as suas posses terrenas, então pecaram sem perdão: 'não foi a homens que mentiste, mas a Deus'. Ambos caíram mortos".
(*) Textos extraídos de VOEGELIN, Eric. "História das Ideias Políticas". Vol. I. "Helenismo, Roma e o Cristianismo Primitivo". É Realizações: São Paulo, 2012. Texto I, pp. 208-209; Texto II, pp. 209-211.
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